Fome
não se acaba com agricultura “forte”
Já há mais tempo a ideia de combate à
fome vem sendo relacionada com a necessidade de aumento da produção de
alimentos. O cenário de crescimento da população mundial e o número de pessoas
que passam fome são constantemente usados para justificar a introdução do
“progresso técnico” na agricultura. De acordo com essa visão, a agricultura
convencional sozinha não seria capaz de produzir alimentos suficientes para uma
população de 9,37 bilhões de pessoas estimada para o ano de 2050. Os
transgênicos são apresentados, especialmente aos países pobres, como
alternativa de aumento tanto da produção como do valor nutritivo dos alimentos.
Essa concepção é correta e até que ponto a agricultura pode contribuir, de
fato, no combate à fome?
Se antigamente a humanidade convivia com
uma produção de alimentos muito baixa e em períodos de catástrofes naturais
muitos morriam em decorrência da falta de comida, atualmente estamos
confrontados com uma situação totalmente diferente: a superprodução. A produção
é demasiada; alimentos são desperdiçados durante o transporte e estragam nos
armazéns; prêmios para paralisar a produção foram introduzidos em propriedades
rurais dos países industrializados e grandes quantidades de alimentos são
intencionalmente eliminadas para evitar a queda de preços. Mas, apesar disso,
ao mesmo tempo cerca de 800 milhões de pessoas passam fome no mundo. De acordo
com dados oficiais da ONU estariam disponíveis 2.800 calorias por pessoa ao
dia, se houvesse uma correta distribuição dos alimentos (conforme a FAO, são
necessárias 1.900 calorias diárias por pessoa). Existem alimentos suficientes
para prover em torno de 2 kg de comida diária por pessoa, dos quais 1,1 Kg de
cereais, 450 g de carne, leite e ovos e mais 450 g de frutas e verduras. Uma
insuficiente produção de alimentos, portanto, não pode mais ser usada como
argumento para explicar a fome, o que, por sua vez, contradiz as projeções de
Thomas Malthus de um crescente aumento da população mundial incompatível com
uma insuficiente disponibilidade de alimentos, pois no mínimo desde 1961, a
quantidade per capita de alimentos disponível superou a correspondente
necessidade humana, o que significa que se as quantidades produzidas fossem
distribuídas de acordo com o consumo de calorias, já desde 1961 não deveria mais
haver ninguém que sofresse por fome ou desnutrição no mundo.
A fome, portanto, não é um problema
técnico e não depende mais de volumes insuficientes de alimentos. Ela também
não é um problema ocasionado por superpopulação, pois não há uma relação direta
entre população e fome: a fome atinge tanto países de alta concentração
demográfica como Bangladesh e Haiti, como países de baixa concentração
demográfica como Brasil e Indonésia. A disponibilidade de recursos ou
catástrofes naturais também não podem mais ser apresentados como causa da fome;
se trata de um problema de distribuição dos alimentos disponíveis que só pode
ser resolvido politicamente. No que se refere a catástrofes naturais, várias
delas já são previsíveis, de forma que é possível desenvolver meios de redução
de seus efeitos. Muitas catástrofes naturais também são ocasionadas e/ou
aprofundadas pela interferência humana no ecossistema, como a agricultura
intensiva voltada a altas taxas de produtividade (desmatamento, longos períodos
de cultivo de monoculturas, erosão e lixiviação do solo, uso de agrotóxicos,
etc). Quanto aos recursos disponíveis, a sua concentração representa um grande
problema em muitos países como, por exemplo, o Brasil, onde apenas 10% da área
agricultável é cultivada e 80 milhões de hectares de terra produtiva estão
ociosos. Se estes recursos fossem utilizados de maneira sustentável,
a população poderia dobrar sem que houvesse problemas em volumes de alimentos
disponíveis. Mas, ao invés disso, dos 175 milhões de brasileiros, 40 milhões
passam fome. Em função da concentração da terra e da agricultura baseada na
exportação, ainda existe o paradoxo, de que 15 milhões de pessoas (36,8% das
famílias rurais brasileiras) são atingidas pela fome na área rural. Isso é
novamente um problema de ordem política que não será resolvido através de um
simples apoio ou fortalecimento da agricultura. Pelo contrário, o incentivo à
agricultura de exportação tem contribuído para a redução da produção de
alimentos básicos (como feijão, arroz e mandioca) e a expansão das monoculturas
(como soja, cacau, algodão).
Se o problema da fome não pode ser
resolvido com avanços tecnológicos, os transgênicos também não representam uma
alternativa para sua solução. Assim como já ocorreu com a “modernização” da
agricultura a partir dos anos 1950, que também veio com a promessa de combate à
fome, a população mais pobre não será beneficiada com a transgenia na
agricultura, mas grandes multinacionais, como a Monsanto, que lucrarão com o
controle e a venda de sementes e agrotóxicos. Através do controle das sementes
as grandes corporações também podem controlar a produção de alimentos: o que
será produzido, os insumos que serão utilizados e onde os alimentos serão
comercializados. Por isso é previsível que, com o monopólio das sementes e a
necessidade do pagamento de royalties, a produção agrícola fique mais cara e o
acesso dos pobres aos alimentos seja ainda mais difícil. Além do mais, os
cultivos de transgênicos disponíveis atualmente (soja, milho, canola e algodão)
são destinados à exportação para os países industrializados, o que não vem a
beneficiar os pobres dos países do sul. As causas da fome como a pobreza, a
desigualdade e a falta de acesso aos meios de produção não serão modificadas
através da introdução dos transgênicos, mas possivelmente ainda serão
aprofundadas, pois poderá ocasionar maior concentração de terras, maior êxodo
rural e maior exclusão social dos pequenos agricultores. E, por último, precisa
ser reforçado um argumento técnico: os cultivos transgênicos disponíveis até o
momento não são mais produtivos que os convencionais, pois eles foram
desenvolvidos para apresentar tolerância a herbicidas e insetos, de forma que
eles não estarão contribuindo com o suposto e anunciado aumento da
produtividade.
Levando em consideração que a fome
apenas pode ser solucionada através de ações políticas, o fortalecimento da
agricultura familiar (pequenas propriedades, onde a própria família dos
agricultores representa a força de trabalho empregada na produção
agrícola) pode contribuir com o combate à fome. Em países como o Brasil, onde a
agricultura familiar é responsável pela maior parte da produção de alimentos
(70% do feijão, 84% da mandioca, 49% do milho, 54% do leite, 58% da carne de
porco, 40% da produção de aves e ovos) e representa 84% das propriedades
agrícolas (4,1 milhões de estabelecimentos rurais), a manutenção dos pequenos
agricultores na atividade agrícola adquire uma grande importância para a
redução da pobreza, já que a maioria destes é responsável pelo abastecimento
alimentar da própria família. Um conjunto de experiências com agricultura no
Brasil demonstra que o modelo da agricultura familiar, baseado na produção
diversificada e no reduzido uso de insumos externos, é o mais eficiente e o
mais apropriado para a garantia da soberania alimentar e pode ser combinado com
programas de combate à fome. Por isso é importante levar em conta o tipo de
agricultura a ser apoiado. O modelo denominado pelos grandes proprietários
rurais de agricultura “forte”, baseado na monocultura para exportação, com
certeza, como podemos verificar na história poderá conduzir a mais
concentração, mais pobreza e mais fome.
Fonte:
Por ANTONIO INÁCIO ANDRIOLI
Doutorando em Ciências Sociais na Universidade de Osnabrück – Alemanha
Doutorando em Ciências Sociais na Universidade de Osnabrück – Alemanha
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